"Finalmente acordei!
Deixo escorrer a água ainda fria pelo meu rosto já lavado em lágrimas de agonia e pelo meu corpo suado a tresandar a medo...
Tudo não passou de um pesadelo...
É incrível como um passado que julgava morto e enterrado, pode voltar para me assombrar novamente na forma de pesadelo!
Voltei a ver-me na janela, em pranto, a gritar para que chamassem alguém porque estavas desmaiado naquele chão... Voltei a ver a minha mãe entrar de rompante e a pegar-me ao colo. Vi-te a levantar e suspirei de alívio por não estares morto! Abriste um buraco na parede azul de contraplacado,só agora dei conta disso...
Pergunto-me porque estás a bater na minha mãe. Será que foi alguma coisa que eu fiz? Será que é por ser má filha que bebes? Porque lhe estás a bater???
Estou tão aterrorizada que não consigo fazer mais nada para além de me encolher debaixo da cama.
Ganho coragem, finalmente consigo sair do buraco e gritar: "Pai, eu amo-te! Não lhe batas mais por favor... Eu vou-me portar bem."
Vejo os teus olhos cheios de ódio, os dela estão esbugalhados. Vejo as tuas mãos apertarem-lhe o pescoço.
Agarras-me contra o teu peito, sentas-me ao lado dela e bates a porta para ires beber mais "uma" no tasco do costume...
É aí que ela me dá o primeiro estalo. Pensei que a minha cabeça ia saltar fora. Ela não entende como te posso amar, depois de assistir diariamente aos maus-tratos que lhe dás.
Eu só tenho quatro anos... Como poderia uma menina de quatro anos explicar à mãe que dizia aquilo para ela parar de ser espancada?
Tinha a sensação que ela me odiava por eu amar o meu pai. Ela culpava-me por deixa-lo beber. E batia-me até ele chegar...
Era ele que secava as minhas lágrimas, enquanto ela aconchegava a camisola ao pescoço a tentar esconder as marcas.
Saiu e voltou ao trabalho no cimo da rua. Eu tinha consciência que era uma vergonha os vizinhos irem chama-la ao restaurante para acudir a filha que estava a berrar à janela, mas fazia-o todos os dias por não saber agir de outra forma.
Tenho a pele vermelha. A água está a aquecer-me a alma...
E eu já não tenho quatro anos."
In "As Histórias da Minha Vida" by P.L.